quinta-feira, 16 de julho de 2009

Jorge Luís Borges e a Matemática


Excerto de  " A lotaria na Babilónia"
Meu pai contava que antigamente — questão de séculos, de anos? — a loteria na Babilônia era um jogo de caráter plebeu. Referia (ignoro se com verdade) que os barbeiros trocavam por moedas de cobre, retângulos de osso ou de pergaminho adornados de símbolos. Em pleno dia verificava-se um sorteio: os contemplados recebiam, sem outra confirmação da sorte, moedas cunhadas de prata. O procedimento era elementar, como os senhores vêem.
Naturalmente, essas "loterias" fracassaram. A sua virtude moral era nula. Não se dirigiam a todas as faculdades do homem: unicamente à sua esperança. Diante da indiferença pública, os mercadores que fundaram essas loterias venais começaram a perder dinheiro. Alguém esboçou uma reforma: a intercalação de alguns números adversos no censo dos números favoráveis. Mediante essa reforma, os compradores de retângulos numerados expunham-se ao duplo risco de ganhar uma soma e de pagar uma multa, às vezes vultosa. Esse leve perigo (em cada trinta números favoráveis havia um número aziago) despertou, como é natural, o interesse do público. Os babilônios entregaram-se ao jogo. O que não adquiria sortes era considerado um pusilânime, um apoucado. Com o tempo esse desdém justificado duplicou-se. Eram desprezados aqueles que não jogavam, mas também o eram os que perdiam e abonavam a multa.



Excerto de "Biblioteca de Babel"



O universo (a que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no meio, cercados por parapeitos baixíssimos. De qualquer hexágono vêem-se os pisos inferiores e superiores: intermina velmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte estantes, a cinco longas estantes por lado, cobrem todos os lados menos dois; a sua altu ra, que é a dos pisos, mal excede a de uni bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um estreito saguão, que vai desembocar noutra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do saguão há dois gabinetes minúsculos. Um permite dormir de pé; o outro, satisfazer s necessidades fecais. Por aí passa a escada em espiral, que se afunda e e eleva a perder de vista. No saguão há um espelho, que fielmente du plica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Bi blioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que serviria esta dupli cação ilusória?); eu prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito... A luz provém de umas frutas esféricas que têm o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.




Excerto de "Aleph"
Fechei os olhos, abri-os. Então vi o Aleph.
Chego, agora, ao inefável centro do meu relato; começa aqui o meu desespero de escritor. Toda a linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartilham; co mo transmitir aos outros o infinito Aleph, que a minha tímida memória mal abarca? Os místicos, em transe semelhante, gastam os símbolos: pa ra significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum mo do, é todos os pássaros; Alano de Insulis fala de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel fala de um anjo de
quatro asas que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não é em vão que rememoro essas incon cebíveis analogias; alguma relação elas têm com o Aleph.) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas esta informação ficaria contaminada de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito.

1 comentário:

Carlos Pires disse...

Jorge Luis Borges,”O Nosso”

Amamos o que não conhecemos, o já perdido.
O bairro que já foi arredores
Os antigos que não nos decepcionaram mais
porque são mito e esplendor.

Os seis volumes de Schopenhauer que jamais terminamos de ler.
A saudade, não a leitura, da segunda parte do Quixote.
O oriente que, na verdade, não existe para o afegão, o persa ou o tártaro.
Os mais velhos com quem não conseguiríamos
conversar durante um quarto de hora.

As mutantes formas da memória, que está feita do esquecido.
Os idiomas que mal deciframos.
Um ou outro verso latino ou saxão
que não é mais do que um hábito.

Os amigos que não podem faltar porque já morreram.
O ilimitado nome de Shakespeare.
A mulher que está a nosso lado e que é tão diversa.
O xadrez e a álgebra, que não sei.

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